O Segundo Agregado - Parte 02

O Segundo Agregado - Parte 02

“Mas quando consideramos com os olhos do conhecimento supremo”, diz Tetsugen, “os animais e os pássaros são também o Tathagata em essência e estão unidos originalmente ao Buda. Por outro lado, os Budas e os Bodhisattvas olham todos os seres vivos considerando que tenham o mesmo corpo que eles, porque participam da mesma mente infinita, são a mesma mente infinita. Portanto, consideram como seu filho único por causa da sua grande compaixão. Apesar desse caráter de todos os seres vivos, o ignorante de mente vulgar, por considerar ótima a caça, corta sua carne, quebra seus ossos, bebe e come e sente-se feliz. Aos olhos de Buda, este fato não se diferencia da ação dos demônios”, é a mesma coisa que o nosso olhar para a hiena, para o urubu. O Buda olha para isso com o mesmo horror.

“Aos olhos de Buda, o homem vulgar corta a cabeça dos seus filhos, estraçalha sua carne e apesar de tudo está muito contente do que vê, do que sente, do que saboreia. É o que se chama ignorante com ideias erradas. Estes atos são considerados como fonte de prazer quando na realidade não são prazer, mas sim um grande sofrimento. Extraviar-se entre o prazer e o sofrimento é o que se designa como segundo agregado, a sensação. Levado de um lado para o outro na onda dos três mundos, nenhum ignorante pode escapar da oscilação entre o sofrimento e o prazer. Por isso, se sentimos prazer ao ver como se abre uma flor, logo sofreremos ao vê-la cair. Se nos regozijarmos ao ver a lua aparecer, nos entristeceremos quando ela se esconder atrás da montanha, se sentirmos alegria por um encontro fortuito, mais penosa se tornará a separação. Quem se regozijar pela sua prosperidade, tanto mais sofrerá a vendo declinar. A adulação é um sofrimento e na realidade o orgulho também, o amor é um sofrimento e o ciúme também. Quão grandes são estas duas percepções, o sofrimento e o prazer, por elas todos os seres vivos dos três mundos estão submersos e não podem jamais emergir. O fato de nascer está acompanhado pelo sofrimento do nascimento, tornar-se velho pela decrepitude, adoecer por uma enfermidade, morrer pelo sofrimento da morte. O súdito sofre, porém, o rei também não pode fugir do sofrimento. Não só o laico sofre, também o monge. Nos exemplos que se seguem que tomam como prazeroso por engano um estado no qual o sofrimento é relativamente leve e logo cessa. Por exemplo, uma pessoa que leva uma bagagem pesada, sente alívio ao descarregar, também uma pessoa que está gravemente enferma e se cura sente-se em um estado agradável. Por outro lado, aquele que encontra prazer ao beber pode se comparar a uma pessoa que sofre de um prurido e acha agradável expor sua pele diante do fogo. Sentir-se em um estado agradável ou se expor diante do fogo, é confundir o sofrimento com prazer. Uma pessoa atacada de sífilis sente um verdadeiro prazer ao se expor diante do fogo e não é um prazer errado. Se compreendermos isso transcenderemos o sofrimento e o prazer abandonando o engano do segundo agregado, a sensação.”

Toda essa explicação de Tetsugen é para demonstrar que a sensação, aquilo que nós tomamos e perseguimos como agradável na nossa vida, também é fruto de um condicionamento mental, está tudo dentro da nossa mente, parece agradável, mas não se engane, é agradável e ao mesmo tempo é sofrimento. Isso é agradável porque somos seres condicionados, se a nossa mente visse com clareza, nós não poderíamos achar agradável aquilo que produz sofrimento a outros. Porque esse é um extravio da nossa consciência, é necessário ter menos consciência para conseguir usufruir do agradável. O que acontece conosco quando sentamos na frente de um prato que foi preparado com o sofrimento? Para usufruir você tem que esquecer que ali tem sofrimento, não pode pensar.

Uma vez eu li um livro, “No mar profundo”, que conta a história de náufragos que muitas vezes perdidos no mar em barcos, optam pelo canibalismo, como nós falamos antes. Quando você mata um companheiro por sorteio para comer o seu corpo como muitas vezes aconteceu e está registrado na história, para conseguir comê-lo é necessário tirar-lhe a humanidade. Então, aquilo que mostra que ele é um ser humano tem que ser retirado, corta-se a cabeça, os pés, as mãos, joga-se fora primeiro. E depois, os pedaços do corpo têm que ser cortados de forma a que não pareça que você está comendo um braço, uma perna, mas sim tiras de carne que não parecem com um ser humano. É a mesma coisa que nós fazemos, também, com os animais: nós os retalhamos e cortamos de tal forma que não pareçam aquilo que eles originalmente eram e nós esquecemos o que eram e fazemos força para não pensar. E então, as sensações agradáveis se sobrepõem à nossa consciência. É necessário obscurecer a consciência para você poder usufruir das sensações agradáveis, é esse o truque que todos nós usamos.

Uma vez eu dei uma carona numa viagem, interior do Rio Grande do Sul, para um homem que era um magarefe, trabalhava num matadouro. Eu perguntei para ele como era o trabalho e ele disse: “no início foi difícil, porque aqueles animais não tinham feito nada para mim e ainda assim eu tinha que matá-los”, e perguntei “e isso mudou?”. Ele respondeu “agora isso passou, não penso mais nada”. A medida que ele foi repetindo o ato, aquela sensação de consciência em relação ao outro foi apagada para própria proteção, é um distanciamento profissional do que está fazendo.

É a mesma coisa quando você lê relatos sobre assassinos. Eu li um relato de assassino que disse que a primeira vez que você mata alguém sente sede, a boca fica seca, sente ansiedade, depois da segunda vez não é tanto e lá pela décima vez não sente nada. Então, as sensações têm o truque do agradável e a consciência é fácil de ser apagada, e se não fosse assim, não teríamos guerras e mortes. Todavia, o preço pode ser muito alto.

Se vocês puderem assistir a um documentário muito longo, vai levar dias para ver, sobre a guerra do Vietnã. Acho que está na Netflix, chama-se Vietnã. São 18 horas de entrevistas, com soldados americanos, com pessoas variadas, famílias, com soldados vietnamitas do Norte, generais, etc., gente de todos os lados. O documentário não toma posição nenhuma, só mostra entrevista atrás de entrevista, e você que decida sobre uma posição. Vendo este documentário, você descobre, como sempre, que todos os lados cometem muitas atrocidades. E você se pergunta: como é possível alguém que foi criado num mundo sem atrocidades de repente ser jogado numa situação onde comete atrocidades? Onde é capaz de fuzilar, matar famílias, bebês e tudo o que aparecer pela frente, queimar as casas, como é possível que isso aconteça? Fica claro que acontece por obscurecimento de toda consciência, mas que o obscurecimento não consegue apagar tudo, de modo que quando o indivíduo sai daquela situação ele está doente. Doente para sempre, porque as memórias são insuportáveis. Isso acontece de ambos os lados, então é recomendável nós assistirmos para vermos como é o ser humano realmente, como ele reage dentro de situações limites.

Já me perguntaram “por que o senhor tem interesse nessas coisas?”. É porque eu quero saber como funciona a mente dentro de situações limites para entender o que acontece com o ser humano. Os mestres do passado também pensaram muito sobre isso, e todo esse texto de Tetsugen fala sobre as sensações, sobre a nossa confusão, entre o agradável e o desagradável, e sobre a nossa consciência mais profunda, nossa percepção do que está acontecendo e o que nós fazemos para obscurecer nossa consciência em favor do agradável em busca de não identificarmos quanto nós reagimos da mesma forma que as hienas, os abutres. Reagimos da mesma forma, porque, ao vivermos algo agradável, queremos esquecer tudo o que está acontecendo, todo o sofrimento que possamos estar causando. O que Tetsugen diz aqui é que os Budas e Bodhisattvas olham os seres de outra forma, porque na verdade não limitam sua consciência, continuam com sua consciência viva, e por isso nasce uma grande compaixão. A compaixão nasce da consciência, não de uma regra. Não adianta colocar as regras, você deveria criar compaixão.

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]