"Quando tudo se desfaz"

"Quando tudo se desfaz"

Quando Tudo se Desfaz
Texto de Pema Chödrön
extraído do livro “Quando tudo se desfaz”
Traduzido por Helenice Gouvêa
Assim é a vida. Não sabemos de nada. Dizemos que algo é bom, dizemos que algo é ruim mas, na verdade, simplesmente não sabemos.
Quando tudo se desfaz e nos encontramos à beira sabe-se lá de que, o desafio que se apresenta a cada um de nós é o de permanecer nesse limiar, sem buscar alguma ação concreta, O caminho espiritual não tem nada a ver com o paraíso, com chegar finalmente ao céu. Na verdade, esse modo de encarar a vida é que nos mantém infelizes. Pensar que podemos encontrar algum prazer duradouro e evitar a dor é o que o budismo chama de samsara, o ciclo inútil que gira e gira, infinitamente, e nos causa tanto sofrimento. A primeira nobre verdade que o Buda nos apresenta chama nossa atenção para o fato de o sofrimento ser inevitável para nós, seres humanos, enquanto acreditarmos que as coisas permanecem — que não se desintegram e que podemos contar com elas para satisfazer nossa ânsia de segurança. Sob esse ponto de vista, o único momento em que realmente sabemos o que está acontecendo é quando nos puxam o tapete e não encontramos nenhum apoio. Podemos utilizar situações desse tipo para despertar ou escolher dormir. Exatamente ali — precisamente no momento em que ocorre a experiência de faltar o chão — encontram-se as sementes que nos levarão a cuidar daqueles que precisam de nós e a descobrir nossa própria bondade.
Lembro-me muito claramente do dia, no início da primavera, em que perdi tudo o que considerava real. Embora isso tenha acontecido antes que eu tivesse qualquer contato com os ensinamentos budistas, representou o que alguns poderiam chamar de uma autêntica experiência espiritual. Ela ocorreu quando meu marido me contou que estava tendo um caso. Vivíamos na região norte do Novo México. Eu estava parada em frente à nossa casa de adobe, tomando uma xícara de chá. Ouvi quando o carro chegou e o barulho da porta batendo. Então, ele é caminhou até a casa e, sem qualquer aviso, disse que estava tendo um caso e que queria o divórcio.
Lembro do céu e de como ele era imenso. Lembro do murmurar do rio e do vapor que saía da minha xícara de chá. O tempo não existia, não havia nenhum pensamento, não havia nada — apenas a luz e uma quietude profunda e ilimitada. Então, eu me recompus, peguei uma pedra e atirei nele.
Quando me perguntam como acabei me envolvendo com o budismo, sempre respondo que foi porque estava com muita raiva do meu marido. A verdade é que ele salvou minha vida. Quando esse casamento desmoronou, tentei arduamente — muito, muito arduamente — encontrar algum tipo de consolo, alguma segurança, algum lugar que me fosse familiar e onde pudesse repousar. Para minha sorte, nunca consegui. instintivamente, sabia que a destruição de meu velho eu, dependente e apegado, era o único caminho a seguir. Foi nessa época que pendurei o tal cartaz na parede.
A vida é uma boa professora e amiga. Se pudéssemos perceber, veríamos que tudo está sempre em transição. No fim, nada é como sonhamos. Esse estado descentralizado e indefinido representa a situação ideal. Nesse ponto, não estamos presos a nada e podemos abrir nosso coração e mente além de qualquer limite. Essa é uma situação sem agressividade, muito frágil e aberta.
Ficar nesse desequilíbrio — com o coração partido, o estomago apertado, o sentimento de desesperança e o desejo de vingança — é o caminho do verdadeiro despertar. Ficar na incerteza, pegar o jeito de relaxar no meio do caos, aprender a não entrar em pânico — esse é o caminho espiritual. Desenvolver a habilidade de perceber-se, de perceber-se com suavidade e compaixão — esse é o caminho do guerreiro. Gostando ou não, temos de nos flagrar um milhão de vezes e mais uma, quando congelamos em ressentimento, amargura e justificada indignação — quando congelamos de qualquer modo, até mesmo em sentimentos de alívio e inspiração.
Todos os dias poderíamos pensar na agressividade que existe no mundo — em Nova York, Los Angeles, Halifax, Taiwan, Beirute, Kuwait, Somália, fraque — em todo lugar. No mundo todo, há sempre alguém lutando violentamente contra um inimigo e a dor está em franca escalada. Todos os dias poderíamos refletir sobre isso e pensar: “Vou acrescentar mais agressão ao mundo?’. Todos os dias, quando as situações se tornam tensas, poderíamos apenas nos perguntar: “Vou cultivar a paz ou me aliar à guerra?”