Pedras na Lama

Pedras na Lama

Pedras na Lama
A imagem das pedras na lama, representa o trabalho de fundação, que os primeiros professores do budismo realizaram no Brasil, criar um alicerce sobre o qual o edifício pudesse ser erguido. Agora nos perguntamos, qual o futuro do budismo no Brasil? É demasiado cedo para fazer esta pergunta, seria prudente esperar alguns séculos para responder. Porém vivemos em tempos de aceleração, e a difusão boca a boca, o transporte dos pés e cavalos, foi substituído pelo fenômeno digital e as viagens quase à velocidade do som.
Assim sendo, podemos tentar presumir o que sucederá, à vista do presente e olhando sempre para o passado, para deduzir os movimentos prováveis desta difusão.
Em primeiro lugar é bom não confundir o espraiar das idéias budistas com o censo budista. O numero de budistas declarados decresce no Brasil, à medida que os imigrantes, que assim se declaram, são substituídos por novos e assimilados descendentes, os quais tornam-se cristãos, principalmente no movimento de integração. Os budistas praticantes são tardos em se assumir como tal, são influenciados pelo budismo, mas não passam por ritos de conversão que os façam se auto declarar budistas, levam anos para tanto.
Por outro lado, das novas e novíssimas seitas de raízes budistas, são a maioria dos que se identificam por budistas convertidos. Aos olhos da antiga tradição budista suas doutrinas se afastaram de tal modo do ensinamento de Shakyamuni, que não podem mais ser chamados budistas, dentro da definição adotada pelo Colegiado Buddhista Brasileiro, CBB, pois algumas destas seitas são deístas e outras sequer aceitam o Buda histórico como seu fundador, havendo-o transformado em mero anunciador de um mestre mais moderno.
Há que considerar que estes movimentos abrem portas, para pessoas, que iniciando por eles, venham a mergulhar no ensinamento mais tradicional, ou seja, servem de iniciadores para a parcela de buscadores mais profundos.
Paralelamente, temos o movimento de difusão das idéias budistas, em primeiro lugar vemos uma distorção dos conceitos, na tentativa etnocêntrica de adapta-los ao linguajar e conceitos já conhecidos, isto sucedeu fortemente na entrada do budismo na China, com o uso de palavras e conceitos taoístas. Somente com o tempo, foram criadas distinções que aclararam a sincretização inicial. Desta forma, vemos freqüentemente, a imprensa usar os termos reencarnação, ou alma, para descrever conceitos budistas, criando uma distorção respeitável – que permeia mesmo textos de pessoas mais esclarecidas – que crêem que o budismo preconiza permanência e eternidade de um eu particular, que será premiado ou punido, exatamente o contrário do ensinamento do Dharma.
Bem ou mal compreendidas, as idéias budistas gozam de simpatia generalizada, em 2006 o Ibope publicou uma pesquisa que revelava que 17% das pessoas declarava-se simpática ao budismo, e também é fácil perceber quantos de textos publicados se referem a conceitos budistas, de alguma forma. Este permear é tão freqüente, que mesmo a linguagem popular incorpora termos com o “zen”, designativo de calma e serenidade, ou mesmo como sinônimo de condutas “nova era”, para desconforto dos zen budistas, que vêem seu nome tornar-se uma marca genérica. Muitos textos de adeptos de outras religiões começaram também a ser eivados de historietas budistas e conceitos dhármicos, em especial os livros de auto ajuda, em que pesem as distorções e usos egóicos dos princípios utilizados.
Do ponto de vista ritualístico há um evidente atraso. São freqüentes o apego a recitações em línguas orientais, algumas baseadas no conceito de sons sem sentido lingüístico, mas carregados de tradição mística, este aceitável, mas outros, mera repetição de orações que poderiam ser facilmente traduzidas em benefício da própria prática. Muitos rituais sequer existiam originalmente nas escolas, mas foram incorporados por demandas populares, como mimetização de rituais pré-existentes nas culturas locais, um exemplo característico é a criação do “ritual do nome” – uma adaptação do batismo para crianças recém-nascidas – que é desconhecido no budismo antigo, mas freqüentemente demandado no ocidente.
Por estas razões é fácil concluir que certos rituais serão incorporados e outros abandonados, à medida que a aculturação do budismo se realize no ocidente.
Quanto às roupas e vestimentas, elas são em geral inadequadas para o clima brasileiro – quando vem de países frios como o Japão e China – onde o budismo floresceu em montanhas e locais gelados. A exceção é o budismo Theravada, por motivos óbvios para quem olha o mapa e vê as latitudes onde ele permaneceu. Os monges sofrem com as vestimentas quentes em demasia, mas alterar as tradições é um trabalho lento, pelo temor que sempre assalta os encarregados de adaptar, temerosos que ficam de jogar fora a criança junto com a água do banho.
A tendência orientalista, que ataca os leigos, deve permanecer, porem amenizada, a medida que o budismo se adapta ao novo mundo, os mestres podem desencorajá-la, como fez o Dalai Lama ao criticar ocidentais que chegam a alterar os móveis de sua casa, crendo que por mudar as aparências tornam-se mais budistas.
Os ensinamentos, em si, não são a parte mais lenta da adaptação necessária, porém intérpretes ocidentais muitas vezes perdem de vista o propósito dos textos, presos a alguma visão dogmática. Freqüentemente surgem teóricos, crentes de que sabem algo pelo muito estudar, mas carentes de prática real. Sendo essa uma característica ocidental, que faz com que não seja surpreendente um filósofo ser admirado por suas teorias, embora seja uma pessoa incapaz de vivenciar uma vida coerente com o que ensina. Perdido em emoções primárias, ou viciado em drogas, pode ser reverenciado mesmo assim. Do ponto de vista budista, uma pessoa com esta conduta não pode ensinar de maneira alguma, se não é um exemplo vivo de seu ensinamento então lhe falta qualquer legitimidade.
Simultaneamente, surgem centros budistas desconectados de escolas e seguindo uma mistura de conceitos de diferentes linhas. Esta salada, caracteristicamente libertária – de tomar apenas o que agrada – cria organizações frágeis, sem raízes e facilmente domináveis por lideranças questionáveis; a falta de disciplina conseqüente leva a acontecimentos que podem denegrir o budismo como um todo, e não é fenômeno ocidental, pois o oriente padece do mesmo mal.O CBB surgiu muito motivado por acontecimentos tristes acontecidos em organizações deste tipo.
Como vemos, o característico ciclo das coisas acontece sem cessar no budismo e no seu fenômeno imperfeito de manifestação no reino humano. No entanto a jóia do Dharma brilha, e, paulatinamente, se ergue sobre o fundamento jogado na lama. Por mais que o meio seja impuro seu fulgor é tal que sua pureza se impõe e floresce, nosso trabalho é erguer a jóia sem perder em nenhum momento nossa clareza e compreensão das dificuldades humanas.
No Dharma,
Monge Genshô
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