Ninguém está mais mergulhado na ilusão do que eu | Monge Kōmyō

Ninguém está mais mergulhado na ilusão do que eu | Monge Kōmyō

Um dos grandes mestres Zen se chamava Kōdō Sawaki Rōshi. Ele é muito conhecido por algumas peças de ensinamento, e uma das frases que mais me impactam em Sawaki Rōshi é quando ele falava sobre si mesmo, ele dizia: “Sou alguém eternamente perdido, ninguém está mais mergulhado na ilusão do que eu. Sou alguém iludido com enfeites bonitos, sou completamente consciente disso quando faço zazen”.

Com essa declaração, Sawaki Rōshi ensina algo que é essencial no Zen: E é o aspecto do Zen que desagrada muitas pessoas. Principalmente neste período em que nós vivemos. Nós vivemos um período de muita ansiedade, um período em que a manipulação da imagem e a criação da ilusão da felicidade nas redes sociais tende a causar baixa autoestima em muitas pessoas. E não só isso, nosso padrão de comportamento como sociedade é um padrão que exacerba a imagem. É um padrão que diz que o que é saudável é você ter orgulho de si mesmo. Orgulho da sua imagem. Como um enfrentamento, como uma defesa. “Eu sou assim mesmo, e dai?”.

A experiência zazen, e Sawaki representa isso quando ele faz esse ensinamento, a experiência zazen, principalmente quando a experiência é vivida com integridade, essa é uma experiência de desconstrução. É uma experiência que, quando estamos em zazen, virados para a parede, nos leva a perceber a nossa profunda relatividade. É uma experiência difícil, como eu disse, para pessoas como nós, que vivemos neste tipo de sociedade. Nós precisamos de reafirmação, e o Zen não nos reafirma. O Zen diz: “você é um iludido”. É um iludido com adornos dourados. Ninguém é mais iludido do que você. Talvez isso pareça duro demais, mas de fato é até bastante suave. Quando nós nos confrontamos no zazen, quando buscamos pensar sem pensar, respirar sem respirar, estar sem estar, nós aprendemos, aos poucos, a retirar essas camadas de ilusão, que nos oferecem falsas certezas, que nos apresentam falsas realidades.

O Buddha ensinava que a vida, a oportunidade de estar vivo, era extremamente rara, e deveria ser valorizada profundamente. Mas o brilhantismo do ensino de Buddha é que ele ensina que nós devemos valorizar a vida, essa vida que nós temos, essa existência aqui e agora, mas ao ensinar essa grande sabedoria, o Buddha jamais ensinava que nós devemos nos considerar os melhores, privilegiados por estar vivos. O Buddha ensinava como é raro, como é rara a oportunidade de nascer como um ser humano, como é rara a oportunidade de viver.

E quando nós, realmente, durante nossa vida de prática, nossa experiência, percebemos isso até em nossos ossos, nós chegamos à conclusão de Sawaki Rōshi. “Como eu sou iludido. Como eu perco meu tempo com ilusões, e perco a oportunidade de perceber e valorizar a vida em sua maravilha e raridade”. E é nessa hora que os nossos problemas pessoais, por mais difíceis que sejam, se tornam pequenos diante da vida. É nessa hora que nós percebemos que não vale a pena perder a vida se perdendo em problemas. Os obstáculos e as dificuldades em nossas vidas possuem soluções. Às vezes, as soluções não nos agradam, mas elas estão lá. Às vezes as soluções implicam em perdas, mas elas estão lá, as soluções. Elas existem. A nossa angustia diante dos obstáculos é querer encontrar soluções que nos agrada. Soluções que atendam as nossas expectativas, e nem sempre é assim. Quando enxergamos a ilusão do nosso eu, nós aprendemos a deixar ir as ilusões de perfeitas soluções, de soluções que vão atender tudo o que a gente quer. E nós aprendemos a lidar com a nossa vida e seus obstáculos dentro das nossas possibilidades, até onde as possibilidades e soluções existem.

A sabedoria de Sawaki Rōshi é uma sabedoria de valorização da vida. É a sabedoria de se ter consciência, profunda, de que as nossas fantasias não nos definem. As nossas ilusões não vão nos salvar. E que a nossa vida é muito mais do que isso. Pratiquem como Sawaki Rōshi. Tenham a coragem de enfrentar as suas próprias ilusões, e como ele diz no final da frase: “eu tenho profunda consciência disso quando eu faço zazen”. Busque essa consciência. Como eu digo, vivam isso em seus ossos. Vivam essa experiência profundamente. Talvez ela não aconteça hoje, ou no próximo zazen, ou no zazen daqui a um mês. Mas quanto mais vocês honestamente e sinceramente continuarem as suas práticas, vocês vão chegar a esse ponto.

Somos nós todos iludidos com adornos dourados. A vida é muito mais do que isso. A nossa vida pode ser muito mais do que isso.


Palestra proferida por Kōmyō Sensei na sangha do Rio de Janeiro em 24 junho de 2023.