Liberação do sofrimento

Liberação do sofrimento

Em Yokoji, monge sentado no telhado do Hattô.
Pode-se perguntar o que adianta saber que a base da vida é o sofrimento, que todos, sem exceção, terão que conhecê-lo? Não seria melhor tentar esquecer isso e ver o lado bom das coisas? Sim, seria, se pudéssemos. Porém, a honestidade e a experiência dizem-nos que não podemos. Não é somente no Budismo que se encontra a necessidade de se abrir para a verdade do sofrimento. Há um hino antigo, atribuído a Jesus, que diz: “Se soubesses como sofrer, terias o poder de não sofrer.” Se negamos o sofrimento e insistimos que é um acidente ou uma intrusão, algo que não deveria existir, simplesmente contornamos o problema. Se o sofrimento se manifesta, real e verdadeiro, não há negação que o faça desaparecer. Mas, ao abrirmo-nos ao sofrimento, então existirá pelo menos a possibilidade de que possamos vir a compreender como sofrer, e com base neste conhecimento, a transcender o sofrimento. É à luz desta transcendência que o Buddha fez seu primeiro sermão. Neste sermão ele disse que “Tudo é sofrimento”; esta era a primeira nobre verdade, um axioma da vida. Mas o Buddha não falou por pessimismo. Ele não disse “O sofrimento existe e não há nada que possamos fazer a respeito a não ser nos resignarmos.” Pelo contrário, ele disse que teríamos que encarar a verdade, já que somente a verdade pode nos libertar. A terceira nobre verdade (deixando de lado a segunda por um momento) diz, de maneira igualmente clara, que existe realmente um meio de transcender o sofrimento.
Potencialmente, todos nós temos o poder de não sofrer. Porém, para realizar este potencial devemos assumir total responsabilidade por nosso sofrimento.
Esta é a segunda nobre verdade. O sofrimento vem da ânsia, a ânsia de ser um indivíduo, até mesmo um indivíduo imortal. O sofrimento não tem sua origem fora de nós. Que sua causa não é algo que nos foi infligido, que somos, no final das contas, responsáveis por ele, este é o grande ensinamento do Buddha. “Por si mesmo” ele disse, “o mal é cometido; por si mesmo se sofre; por si mesmo o mal é desfeito; ninguém pode purificar o outro.” A ânsia de sermos separados e distintos afeta toda a nossa vida. Afeta a forma pela qual vemos o mundo, o que tentamos fazer e o que dizemos. Afeta até a forma de ganharmos nossa vida, e nossa ética e conduta são também afetadas e distorcidas por ela. Esta ânsia leva-nos a viver adormecidos num mundo de sonhos, no qual nossas energias são dispersadas e nossa atenção dissipada. O meio de transcender o sofrimento foi dado pelo Buddha como a quarta nobre verdade, conhecida como o sendeiro óctuplo, baseado no correto modo de ver o mundo, ou reta visão, reto esforço, reta palavra, retos meios de existência, reta ação, e reto pensamento. Baseia-se, também, na reta atenção e na reta concentração. A palavra “reto” (ou “correto”, ou “justo”) não significa reto em relação a um modelo perfeito ou a um conjunto de regras. Ao contrário, significa a ausência de distorção criada pela ânsia de ser separado. Reta atenção e reta concentração, por exemplo, proporcionam uma mente calma e clara, que é o alicerce da vida ética e espiritual. A verdade do sofrimento, resultante da nossa ânsia, e a possibilidade de transcender o sofrimento, abandonando aquilo que corrompe a nossa relação com os outros e com o mundo, constituem a base e a motivação para o esforço espiritual. De uma maneira ou outra, esta verdade está subjacente ao Budismo, ao Cristianismo e a outras atividades espirituais.
(Convite à Prática do Zen – Albert Low, ShiSil Editora, 1998)