Desespero aproxima birmaneses dos monges budistas e ameaça junta militar

Desespero aproxima birmaneses dos monges budistas e ameaça junta militar

31/05/2008
Reportagem do The International Herald Tribune
Em Kun Wan, Mianmar
Esta cena dificilmente ocorreria se as autoridades nela envolvidas fossem os generais que mandam em Mianmar: quando um comboio de caminhões levando suprimentos para ajuda humanitária, e liderado por monges budistas, passa pelas vilas devastadas pelo ciclone, crianças famintas e mães desabrigadas saúdam os religiosos inclinando o corpo, em um sinal de súplica e respeito.
“Quando vejo essas pessoas, tenho vontade de chorar”, afirma Sitagu Sayadaw, 71, um dos mais respeitados monges de Mianmar.
Na clínica improvisada de Sayadaw, nesta vila próxima a Bogalay, uma cidade no delta do Rio Irrawady situada 120 quilômetros a sudoeste de Yangun, centenas de moradores atingidos pelo ciclone Nargis chegam todos os dias buscando a assistência que não receberam da junta militar ou dos funcionários das organizações de auxílio humanitário.
Birmaneses afetados pelo ciclone recebem ajuda em Shwepoukkan, região de Yangun
Eles remam durante horas no rio de águas agitadas, ou carregam os pais doentes nas costas, caminhando pela lama, debaixo de chuva. Todos viajam quilômetros para alcançar a única fonte de ajuda que conhecem e na qual sempre podem confiar: os monges budistas.
O ciclone de 3 de maio deixou mais de 134 mil pessoas mortas ou desaparecidas e 2,4 milhões de sobreviventes que enfrentam a fome à falta de moradia. Recentemente, as pessoas que se abrigaram em mosteiros ou que se congregaram nas estradas, aguardando pela chegada de ajuda, foram novamente deslocadas, desta vez pela junta, que deseja que elas deixem de ser um embaraço para o governo e exige que retornem para as suas vilas “para a reconstrução”. Na sexta-feira (30/05), autoridades da Organização das Nações Unidas (ONU) disseram que os refugiados estão sendo expulsos também dos campos de desabrigados administrados pelo governo.
Mas pouca coisa restou das suas casas, e estes indivíduos encontram-se quase tão expostos aos elementos quanto os seus búfalos cobertos de lama. Enquanto isso, a ajuda externa demora a chegar, já que as agências de auxílio humanitário só obtêm gradualmente acesso à região duramente atingida do delta do Irrawady, e o governo confisca os automóveis de alguns doadores particulares birmaneses.
“Em toda a minha vida, nunca vi um hospital. Não sei onde fica a sede do governo. Não posso comprar nada no mercado, porque perdi tudo o que tinha durante o ciclone”, afirma Thi Dar. “Assim sendo, apelei para o monge”.
Com lágrimas nos olhos, a mulher de 45 anos junta as mãos em um sinal de respeito perante o monge que entra na clínica, enquanto conta a sua história. Os outros oito membros da sua família foram mortos pelo ciclone. Atualmente ela nutre idéias de suicídio, mas não há ninguém com quem possa conversar sobre isso. Certo dia, chegou à sua vila a notícia de que um monge tinha aberto uma clínica a uma distância de dez quilômetros rio acima. Assim, na última quinta-feira, ela acordou cedo e pegou o primeiro barco naquela direção.
Nay Lin, 36, um médico voluntário na clínica Kun Wan, uma das seis clínicas e abrigos de emergência criados por Sitagu na área do delta,
diz: “Os nossos pacientes sofrem de ferimentos infeccionados, dores abdominais e crises de vômito. Eles também necessitam de aconselhamento por causa do trauma mental, da ansiedade e da depressão.
Desde o ciclone, os birmaneses aproximaram-se ainda mais dos monges, e a alienação do povo em relação à junta aumenta. Isso não prenuncia fatos positivos para o governo, que reprimiu brutalmente milhares de monges quando estes saíram às ruas em setembro do ano passado para pedir aos generais que melhorassem as condições de vida da população.
Em todas as vilas atingidas pela tempestade fica evidente quem conquistou o coração do povo.
Alguns monges morreram na tempestade com a população. Agora, outros consolam os sobreviventes, e dividem as moradias enlameadas com eles.
Enquanto o governo era criticado por obstruir as medidas de auxílio humanitário, o mosteiro budista, o centro tradicional de autoridade moral na maioria das vilas desta região, mostrou ser a única instituição na qual o povo pode confiar para obter ajuda.
Os mosteiros no delta – aqueles que ainda estão de pé após a tempestade – encontram-se repletos de refugiados. As pessoas seguem para lá com doações ou como voluntários. Os mosteiros que antes atuavam como centros religiosos, orfanatos e asilos para os idosos, atualmente funcionam também como abrigos para os flagelados.
“O papel dos monges é mais importante do que nunca”, diz Ar Sein Na, 46, um monge da vila de That Kyar, na região do delta. “Em um momento de enorme sofrimento como este, o povo não tem ninguém a quem recorrer, exceto aos monges”.
Kyi Than, 38, conta que viajou 25 quilômetros de barco até o campo de desabrigados de Sitagu.
“O monge da nossa vila morreu durante a tempestade. Hoje estou muito feliz por ter a minha primeira oportunidade de falar com um monge desde a tempestade. Para nós, os monges são como pais”, diz ela. “O governo quer que fiquemos de boca fechada, mas os monges nos escutam”.
Enfrentando o mais mortífero desastre natural na história recente do país, os monges mais antigos organizaram as suas próprias campanhas de auxílio.
Todos os dias, os comboios deles passam pelas estradas do delta. Uma figura proeminente nesta iniciativa é Sitagu, cujo nome, ao ser proferido por aqui, gera invariavelmente palavras de reverência ou um sinal de “positivo” com o polegar.
“A meditação é incapaz de remover este desastre. Agora o apoio material é muito importante”, diz Sitagu. “Atualmente, no nosso país, não existe um equilíbrio entre o apoio material e o espiritual”.
Caminhões carregados de arroz, feijão, cebola, roupas, lonas e utensílios de cozinha, doados por pessoas de todo o país, chegam ao Centro Missionário Budista Internacional de Sitagu, em Yangun, no início de cada manhã. Todos os dias, pouco após o nascer do dia, um comboio de caminhões ou uma barca no Rio Yangun segue para o delta, levando suprimentos e voluntários.
Entre os aldeões daqui, Sitagu parece ter tanta autoridade quanto o papa entre os católicos. Quando ele senta-se em um banco de madeira na sua sede de operações de campo, as pessoas fazem fila para demonstrar respeito. Os aldeões vêm para apresentar listas das suas necessidades mais urgentes. Os monges das vilas vizinhas pedem ajuda para consertar os seus templos. As famílias ricas de certas aldeias ajoelham-se diante dele e doam maços de dinheiro.
No entanto, assim como outros monges experientes, ele precisa manter um equilíbrio cuidadoso. Ele conta com a autoridade moral para falar em nome do povo sofredor, mas precisa também proteger os seus programas e hospitais que fornecem assistência médica gratuita aos destituídos, em um país cujo governo reprova tais iniciativas particulares.
Mas, em uma tarde recente, ao falar no seu abrigo, enquanto uma chuva provocada pelas monções batia contra o telhado, Sitagu parecia estar frustrado com o governo. “Não consigo enxergar um líder político verdadeiro no meu país. A ‘via birmanesa para a democracia’ pregada pelo general Than Shwe?”, questiona ele, referindo-se ao líder máximo da junta militar. “O que é isso?”
Ele defende o levante dos monges de setembro do ano passado, afirmando que o fracasso do governo em proporcionar “estabilidade material” ao povo prejudicou a capacidade dos monges de fornecer “estabilidade espiritual”.
Entre os monges entrevistados na região do delta e em Yangun não havia nenhum sinal de protestos organizados iminentes.
Mesmo assim, um monge de 40 anos no campo de refugiados de Sitagu diz que “os monges estão bastante furiosos” com a recente medida do governo no sentido de expulsar os refugiados dos mosteiros, das cabanas à beira das estradas e de outros abrigos temporários, ainda que a mídia estatal esteja repleta de artigos que falam sobre os esforços do governo para ajudar os desabrigados. “O governo não quer mostrar a verdade”.
Um jovem monge no mosteiro do distrito de Chaukhtatgyi Paya, em Yangun, prevê que haverá problemas pela frente. “Vocês verão certas coisas voltarem a ocorrer, porque todo mundo está com raiva e desempregado”, adverte o monge, que conta que participou da “revolução de açafrão”, e que traz uma grande cicatriz sobre o olho direito, provocada pelo espancamento que lhe foi aplicado por um soldado.
Um monge do Estado de Mon, no sul de Mianmar, e que está visitando o delta para constatar os danos e providenciar remessas de suprimentos,
diz: “Para o governo, estas pessoas não passam de animais mortos nos campos”.
O confronto efervescente entre os dois pilares atuais da vida em Mianmar – as forças armadas e o clero budista – é evidente nas vilas após a passagem do ciclone.
Pouco após a tempestade, um monge de Myo Thit, uma vila a 30 quilômetros de Yangun, caminhou pelas redondezas com um megafone convidando as vítimas a se abrigarem no seu mosteiro, e pedindo às pessoas que fizessem doações. Os moradores da vila contam que o monge teve que parar, depois que um líder local ligado ao governo ameaçou confiscar o megafone.
A interdependência entre os monges e o povo é muito antiga. Os monges recebem esmolas – comida, remédios, roupas, dinheiro para comprar livros – dos leigos. Em troca, oferecem conforto espiritual. Nas vilas destituídas de escolas do governo, uma educação monástica é freqüentemente a única disponível para as crianças.
“Existe uma relação de reciprocidade entre os monges e o povo”, explica Desmond Chou, um estudioso de religiões comparadas, que nasceu em Mianmar, mas que mora em Nova Déli, na Índia. “Se há um incêndio em uma vila de Mianmar, geralmente são os monges, e não os bombeiros, que chegam primeiro ao local para salvar as pessoas”.
Cortesia de: Ana Lúcia