Vamos comentar agora o título Sandōkai, nele, “san” significa a infinita multiplicidade de seres e coisas existentes no mundo, nos quais os fenômenos do universo expressam suas variadas formas, estados e condições. “Do” significa igualdade em termos e amplitudes universais.
Devemos lembrar que a língua japonesa, sendo uma língua com muitas palavras monossilábicas, é uma língua que tem uma quantidade de homófonos muito maior do que estamos acostumados em português. Em português nós podemos dizer manga, que significa manga de uma roupa e também pode significar a fruta. E temos no Nordeste até o verbo mangar, que significa zombar de alguém. Absolutamente desconhecido no sul do país. Se você disser, estou mangando de alguém, no sul, ninguém vai entender o que, por acaso, você deseja significar.
Em japonês, os ideogramas muitas vezes explicam o que se está falando. Nós temos uma palavra como “ko”, por exemplo. Tem aproximadamente 60 significados diferentes. Pode significar antigo, como em kobudō, ou pode significar menino, pode significar farinha, pode significar pequeno também.
Portanto, quando você diz um som, não quer dizer que você saiba isoladamente ao que está se referindo. Você precisa de contexto. E muitas vezes explica-se o contexto, em línguas como o chinês, o japonês ou o coreano, com os ideogramas.
Nesse caso, esse “do”, que significa igualdade, é bem diferente do “do” de caminho, que aparece em muitos dos nomes que tenho dado aos meus alunos. O “do” de Sandōkai, significa igualdade em termos universais. Na igualdade universal, as infinitas e diferentes coisas do universo fundem-se em uma unidade sem qualquer distinção, significando que, originalmente, tudo já é apenas uma única coisa. Esse tema é extremamente recorrente no budismo e ele se amplificou muito a partir do movimento Mahāyāna.
O movimento Mahāyāna, “Mahā” que significa grande, não em japonês, mas em sânscrito, e “Yāna” que significa veículo, aquele que conduz. Então Mahāyāna é o grande veículo. O grande veículo abrange praticamente todas as formas de budismo hoje, exceto o budismo do sul da Ásia, a escola Theravāda e suas ramificações.
Na Escola Mahāyāna, da qual o grande expoente é o mestre Nāgārjuna, que amplificou o conceito de vazio, existe a noção de que as coisas não têm existência autônoma. Que todas as coisas são participantes de um grande todo, interligadas, interconectadas de tal modo que você não pode dizer que alguma coisa tem uma existência separada, independente.
Essa é uma das ilusões mais recorrentes, dos seres humanos, nós nos vemos como separados. Você olha para outras pessoas, e pensa, eu estou aqui, eles estão lá, eles são diferentes, eles têm outras vidas, eles são outras pessoas. No entanto, em termos universais, nós somos apenas fagulhas de um grande fogo, ou gotas em um grande mar, ou moléculas de ar na atmosfera, movidas pelo vento, todos juntos, todos uma única coisa. Nós nos sentimos separados por um evento, um fenômeno momentâneo. E isso, essa noção de identidade separada, é a grande ilusão.
Então, todo o tema dessas aulas que se sucederão aqui, sobre esse poema Sandōkai, gira em torno desse assunto, a identidade do relativo e do absoluto. Temos vidas relativas, tocadas por diferenças que, para nós, parecem muito importantes. Mas, no fundo, somos todos uma única coisa. Quando eu digo, não somos nós que vivemos a vida, mas a vida que nos vive, isso parece muito obscuro. Mas nós somos a vida humana na Terra.
Pensamos que somos indivíduos e esse pensamento de que somos indivíduos é o que nos atrapalha. Ele é exatamente a oposição da iluminação. A iluminação dissolve essa percepção, a percepção do eu separado. Por isso, estudar o Zen é estudar a si mesmo, e estudar a si mesmo é esquecer de si mesmo. E esquecer de si mesmo é demasiado difícil.
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Palestra proferida por Genshō Sensei em teishō na Daissen Virtual 29 em junho de 2024.