Aluno: Agora fiquei pensando: aqui na América Latina pelo menos 80% das vítimas de violência são as mulheres, então nesse caso significaria que as mulheres têm mais carma negativo?
Monge Genshô: Não é isso. Na realidade ambos participam do mesmo carma. Você tem carma para nascer na América Latina e você tem carma para nascer mulher, mas o carma do agressor é muito pior do que o carma da vítima. Essa resposta já foi dada várias vezes pelo Zen: merece mais compaixão o agressor do que a vítima. Porque o que ele vai sofrer por causa disso é muito maior, só que neste momento não é claro.
Muitas vezes nós pecamos por falta de clareza. Eu vi uma reportagem dizendo que um hospital de São Paulo poderia fazer 300 operações para devolver a visão de pessoas, mas só 50 operações seriam feitas porque o dinheiro do governo para pagar os insumos necessários não existia mais. O médico revoltado na televisão dizia: “essas pessoas vão ficar cegas permanentemente, porque se não as operarmos, elas não terão cura”. E então eu lhe pergunto, você pode imaginar o carma de quem roubou o dinheiro que seria usado para financiar essas operações? Quantas vidas serão necessárias para resgatar isso? O carma de quem causa um mal é imenso e é muito maior do que podemos imaginar.
Existe carma para que o sofrimento exista no mundo, o problema é que nós olhamos só o momento presente. Vem alguém aqui agora, me rouba e eu fico revoltado, mas quantas vezes em vidas passadas eu roubei? Eu não sei. Mas certamente eu só estou neste mundo onde essas coisas ocorrem porque eu tenho carma para vir para cá, senão eu estaria em outro mundo. A vingança também só aumenta isso, gera ódio e mais ódio.
Pol Pot, no Camboja, conseguiu criar uma situação em que um terço da população foi morta, depois que acabou o khmervermelho e a sua tentativa de criar uma sociedade pura. Após terem matado todas essas pessoas, um Mestre budista reunia as pessoas e pedia que recitassem uma frase só: “o ódio não termina com ódio, o ódio só termina com amor”. Foi assim que o Camboja conseguiu sobreviver, porque se nada fosse feito, a população que sobrou se mataria. Iriam se vingar dos matadores e se tornariam matadores também. É por isso que nós não saímos desse tipo de problema e é isso que significa carma. Significa ação. Carma vipaka é o fruto da ação. Não há como avaliar o carma, porque não existem férias disso e nem perdão. Não há ninguém que vai lá e paga seus erros para você, do ponto de vista budista não é assim. Do ponto de vista budista você pode mudar o seu carma fazendo muito bem, mas nunca vai conseguir zerar isso completamente. É como quando você insulta alguém e depois se arrepende. Você pede desculpas e a pessoa desculpa. Isso melhora muito o seu carma, mas se você cometer esse erro de novo, as pessoas vão lembrar que antes você já o havia cometido, então ele não foi totalmente perdoado. No universo não há uma coisa chamada perdão absoluto.
Aluno: Se há essa questão do carma contínuo, então nós temos muita coisa para pagar por conta do passado. Tantas coisas já aconteceram no mundo e por que tudo isso está sendo refletido em nós?
Monge Genshô: Porque você também estava lá.
Aluno: Na época dos macacos?
Monge Genshô: Na realidade, mesmo para uma grande parte do cristianismo, como o próprio Papa já comentou, a questão da evolução é mais do que uma hipótese e isso faz todo sentido. Se olharmos, por exemplo, as raças de cães que existiam no passado e comparar com as que existem hoje, vamos perceber que são bem diferentes. Nós conseguimos causar enormes diferenças simplesmente cruzando animais de uma mesma espécie. Mas eu não estou aqui para defender uma teoria ou outra, porque não se trata mesmo da questão de teorias. Aquilo que a ciência demonstrar está muito bem demonstrado para o budismo, não discutimos fé ou criação. Se existisse alguém que criou alguma coisa, então existe alguém responsável por tudo que está acontecendo. Essa seria a primeira questão, a outra é que se eu for precisar de alguém para explicar a origem das coisas eu também precisaria de alguém para explicar esse primeiro alguém.
Há uma história muito antiga sobre um rei que perguntou a um Monge budista: “é verdade que a Terra está apoiada sobre um grande elefante?” e o Monge respondeu: “é, estamos em cima de um grande elefante”. “Mas e o elefante está em cima de quê?”, perguntou, e o Monge: “de uma grande tartaruga”, “mas e a tartaruga está em cima de quê?” “Rei, daqui em diante são só tartarugas” e assim vai. A procura de explicações fáceis para a origem sempre leva a uma regressão sem fim, você sempre tem que ir para outra tartaruga, outra tartaruga, etc. O budismo não tem como seu interesse responder perguntas desse tipo. As explicações são para a ciência ( e ela sempre pode reforma-las). O budismo trata da ciência da mente, da felicidade, de onde vem o sofrimento e não trata, por exemplo, de explicar qual é o número atômico do estrôncio. Se quisermos saber isso podemos pesquisar e pronto, temos como resolver essas questões. Não é o objetivo do budismo a resposta destasperguntas.
Uma vez eu estava numa cerimônia onde um Mestre fica na frente com um bastão e os Monges vão até ele fazer perguntas. O Mestre responde, bate com o bastão no ombro do monge e o Monge que perguntou recua de costas agradecendo. Eu fui até lá e perguntei: “eu ouvi falar sobre o carma, como é que surgiu o primeiro carma?”. E ele respondeu: “quando você souber me explique” e bateu o bastão. Ou seja, não é assunto do Zen. Se querem saber essas coisas comprem livros sobre a ciência, ela tem se saído bem. Já temos luzes por causa dela, ar-condicionado, roupas e assim por diante.
Aluno: Acho que o grande problema do sofrimento do ser humano é a busca por explicações. Queremos saber de onde viemos, para onde vamos, por que sofremos e tudo mais. Damos toda essa volta para retornar ao simples. Como podemos nos desligar disso?
Monge Genshô: Nós temos uma receita: pegamos a pessoa, colocamos uma almofada no chão e a sentamos. Dizemos para pararem de pensar sobre passado ou futuro e pedimos para que elas fiquem ali até que suas mentes serenem. As pessoas sofrem demais por coisas que pensam. Nessa semana eu estava conversando com um rapaz em Florianópolis e ele me dizia que detestava a cidade, que era horrível viver ali e eu disse uma coisa para ele: “isso tudo está na sua cabeça, você pode se mudar daqui para qualquer outro lugar e se chegar neste novo lugar com esse pensamento a infelicidade irá junto, mas se você levar a felicidade ela irá junto”. Isso significa que todos os lugares são ilusórios.
Dez anos atrás me mudei para Florianópolis e fui morar na praia. O que eu faço? Não vou à praia. Esse é o ser humano em estado puro. Quem é que vai para a praia? Gaúcho vai. Sai de Porto Alegre onde não tem praia e vai para Florianópolis. Eu estou trabalhando num projeto em Gramado e para mim, que acho todos os lugares maravilhosos, Gramado é lindo. Mas eu estava lá essa semana e ouvi uma pessoa dizer ironicamente: “aqui é tão bom que o inverno vem e não quer ir embora”, ou seja, já é outra visão da cidade.
Buda disse: “a vida é dukkha”, na verdade duk significa eixo e dukkha é um eixo fora do lugar na roda, desviado, fazendo com que a roda faça ciclos. O que ele quis dizer é que a vida é sobe e desce, é insatisfatória, às vezes está contente e às vezes está triste, às vezes está com dinheiro e às vezes está sem, às vezes está com amor e às vezes está com dor de cotovelo e assim por diante. Por que a vida é assim? Porque temos uma expectativa com relação a ela. Mas se você sentar e desconsiderar o futuro, o que vier estará bem.
Nós não avaliamos as coisas muito bem. Eu já ouvi um motorista de táxi se queixar para mim que disseram para ele: “que vida boa a sua, passa o dia inteiro passeando de carro”. Quem viaja muito ouve assim: “que vida boa, vive viajando”. Ontem peguei um avião e fui de Porto Alegre para Florianópolis. Essa manhã vim de Florianópolis para Goiânia, depois vou pegar um voo de Goiânia para Maringá e depois vou para Porto Alegre. Essa pessoa que disse isso não sabe que você fica muito cansado, que dorme no avião, que quando chega no aeroporto e quer comer só encontra sanduíche e que o preço é alto. As pessoas não percebem que tudo aquilo que parece maravilhoso quando você faz ocasionalmente não é maravilhoso para quem faz sempre. Por isso que quem mora na praia não vai à praia. É só isso.
(continua…)