Mas o que Tetsugen se concentra em dizer é que as percepções, que surgem das nossas sensações, são todas ilusórias, todas elas são construídas também, mesmo o amor e o ódio, os outros sentimentos, todos eles passam por construções, e todas as coisas que você pensa são construções e poderiam ser pensadas de outra forma. Você pode pensar que a vida não vale a pena, como às vezes algumas pessoas pensam. No entanto, é como se você fosse cego e não enxergasse, porque se tirasse a venda dos olhos passaria a enxergar que aquele dia é o dia mais maravilhoso da sua vida. Acontece que essa pessoa, nesse dia, não pensaria em sair desse mundo com tanta coisa para ver, que ela não tinha visto antes, porque está cega pelas suas ilusões.
Você já tem os olhos, pode olhar e ver, mas não enxerga a maravilha de estar vendo. Então, grande parte da felicidade da iluminação, do despertar, não vem de paixões: é só simplesmente olhar e ver a maravilha, ver e ouvir a maravilha, porque quando você está sentado em zazen ali, quieto por muito tempo, e um pássaro canta lá fora, não é maravilhoso? Mas quantas pessoas ouvem o pássaro e não prestam atenção que é maravilhoso? Muitas. Mas aquele som é maravilhoso, aquela pequena coisa é maravilhosa. Se você não está percebendo é porque não está realmente consciente do momento presente, não está consciente do que é a vida e de todas as coisas que vêm junto dela, só que para isso você não pode se extraviar nos sentimentos que são construídos.
Você pode sentir as sensações, ter as percepções, ter o sentimento, mas não pode enlouquecer no sentimento, nem no amor, nem no ódio, nem na inveja, nem no ciúme, nem nada. Você tem que olhar para eles e saber que eles foram construídos por você mesmo. Eu construí assim e de fato tem sentimentos que você quer construir, e então vale a pena acalentá-los. Todos esses sentimentos de clareza, como compaixão, percepções mais profundas sobre as coisas, valem a pena serem construídos, mesmo que pareça para os outros que você não bate bem, que é o louco, porque você vê o mundo de forma que os outros não estão vendo. Há uma sensação de distanciamento, porque você está vendo as coisas de uma tal forma e ninguém em volta está vendo. Então, minha resposta é sempre: procure a Sangha comunidade budista). A Sangha é uma joia, e na Sangha você vai encontrar pessoas que estão se sentindo da mesma maneira que você. Com esses amigos do Dharma você pode compartilhar esses sentimentos que são diversos dos que a maioria sente.
Conheço bem isso: 70 anos atrás, quando eu nasci, meu pai era vegetariano e, claro, essa perspectiva sobre a vida que ele tinha era completamente absurda num mundo de 70 anos atrás, no interior do Rio Grande do Sul. Eu me lembro que organizamos uma reunião de vegetarianos na cidade de Pelotas e foram 6 pessoas (risos). Lá há a maior produção de charque. Então conheço o distanciamento desde pequeno.
Continuando com Tetsugen: “É pela ilusão de um instante nascido de um desejo que um homem rouba no mundo”. Isso não acontece no Brasil, claro, a gente sabe (risos), “…é castigado segundo as disposições da Lei, perde a honra”, isso no Japão (risos), “…e cairá por muito tempo em sofrimentos na próxima vida. E também é pela ilusão de um só momento que ao projetar mudar a sociedade e derrubar o governo pela revolução, um homem se castiga severamente a si mesmo e é responsável pelos sofrimentos insuportáveis de todos. A primeira ideia que nos inspiramos quando projetamos uma revolução vem da ilusão de um instante, tão pouco consistente como o fumo do tabaco”. Como ele pode ter escrito isso há 400 anos? Nós só vemos isso se repetindo. Uma vez eu escrevi um artigo que dizia que os homens mais perigosos do mundo são os que sabem o que é bom para os outros. Porque por conta disso querem impor a sua solução para todas as pessoas, mas só ocorre uma maneira de impor, não importa se é de direita ou esquerda, se ele pensa que tem a razão, se pensa que é o certo, se embriaga pelo poder e com o tempo ele só vê uma maneira: matar e usar da violência para se manter no poder, porque ele acredita que tem a solução que é a melhor, e aqueles outros que estão reclamando estão errados. Nós estamos vendo isso agora, porque ainda hoje temos isso.
“Como não sabemos que esta ilusão de um instante é a origem da desgraça, nos agarramos ardentemente a essa ilusão e esta termina por espraiar-se, como uma nuvem espalha no céu, e não podemos jamais renunciar a ela. É incomparavelmente mais fácil apagá-la no coração se compreendermos bem, desde o primeiro momento, que se trata de uma ilusão. Um provérbio diz: a árvore que mede várias braças, nasce também de uma semente minúscula. Ainda que a grande árvore tenha alcançado mais de cinco ou dez braças, quando começava a crescer era apenas uma semente tão pequena como a ponta de uma agulha, e no momento da germinação era fácil arrancá-la e jogar a semente fora. Convertida em uma grande árvore é impossível arrancá-la, embora muitas pessoas unam as suas forças. O mesmo se sucede com a ilusão: temos que rechaçá-la imediatamente quando surge o primeiro pensamento”, se você deixar crescer, ela fica muito grande e vai ser muito difícil de erradicar.
“No entanto, a ilusão não é tão difícil de extirpar como a grande árvore que é composta de matéria, por muito que seja o tempo durante o qual nos apegamos a esta ilusão. Uma vez decididos a abandoná-la, a coisa é fácil. A ilusão desaparece num instante. Como a escuridão acaba ao amanhecer, o desaparecimento da ilusão é semelhante ao desaparecer das trevas, no momento em que as lâmpadas se acendem em um quarto que esteve escuro por mil anos. Embora a escuridão tenha reinado muito tempo, uma vez acesa a lâmpada não é mais difícil ver claramente. A ilusão é assim. Quando a mente se esclarece, mesmo a ilusão arraigada durante muito tempo desaparece num instante. Abandonem as ilusões e elevem-se além do terceiro agregado, dos conceitos, e alcancem a iluminação.”
[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]