O Arpão

No início de 2001, quando eu ainda não era um monge zen, fiz algumas palestras, como praticante leigo, e ensinei meditação em um hotel no litoral de Santa Catarina. Certo dia, esteve presente um empresário e sua esposa. Ficamos amigos, visitei-o em sua empresa em uma cidade próxima. Mostrou-me orgulhoso seus troféus de caça submarina. Fotos de lindas garoupas, prêmios vários. Depois, visitei-o em sua casa, vi sua lancha e ouvi mais histórias de mergulho e caça. Em sua mesa, alguns livros sobre budismo.

Ele percebeu que eu não caçaria. Perguntou o que eu achava da caça. Respondi que estava tudo bem para ele, mas que eu não caçaria ou comeria. Expliquei que essa era uma condição minha, mas que enquanto ele nada sentisse, tudo estaria correto. Ressalvei que tudo seria diferente se, um dia, ele percebesse que aquele arpão, que entrava no peixe, trespassava a ele próprio.

Passou-se um ano. Nos escrevemos via Internet. Ele leu livros de budismo, esteve em Porto Alegre para assistir a uma palestra de Monge Tokuda, mas não me narrou o que me disse nos feriados de fim de ano de 2001:
“Ouvi aquela frase e continuei em meu esporte preferido. Cada vez mais ambicioso. Só queria mergulhar a mais de 20 metros, pegar grandes peixes. Não fiquei pensando a respeito do que me disseste. Um dia, perto de uma ilha, a água clareou e ficou magnífico o mergulho, várias lanchas apareceram para mergulho e caça.

Repentinamente, uma lancha passou por cima de mim, bateu em minha cabeça e a hélice cortou minha roupa nas nádegas. O caiqueiro que me vigiava me apanhou, pensei que estava ferido, e tonto com a pancada percebi que havia escapado por um triz da morte. Sentei-me no fundo da lancha e disse que não pescaria mais. Meus companheiros ficaram tentando me acalmar e não entenderam porque comecei a chorar, eu dizia: – É um aviso, é um aviso… Chorei até chegarmos à praia.

Alguns dias depois, voltei a mergulhar duas vezes. Nada cacei. Era como se a magia da caça houvesse desaparecido. Eu só queria confirmar meus sentimentos dentro da água.

Passou-se algum tempo, um dia, eu bebi demais e caí no banheiro. Feri a cabeça e cortei o tornozelo no vidro quebrado do box. Minha esposa me socorreu e fiz curativos. Não senti muita dor na hora e fui dormir. Durante a noite um pesadelo me assaltou: eu era um peixe e um arpão me fisgava, entrava pelo meu pé e saía pela minha cabeça, os ferimentos doíam e meu corpo inteiro se contorcia espasmodicamente, como os peixes que eu caçara. Acordava, me acalmava, dormia de novo e o pesadelo voltava. Eu sentia o arpão ao longo de todo o meu corpo, implacável, suas extremidades se projetando das feridas. E aquilo se repetiu durante a noite toda. De manhã, exausto, disse à minha esposa:

– Hoje paguei minhas mortes.

Vendi minha lancha e todos os apetrechos. Não pesco mais”