Mente de principiante - Parte 3 | Monge Kōmyō

Mente de principiante - Parte 3 | Monge Kōmyō

[CONTINUAÇÃO]

Na prática de ontem, em Niterói, eu falei sobre um termo que é muito importante no Zen. Em japonês, o termo é Shoshin. A tradução desse termo em português é “mente de principiante”. Esse termo, esse conceito, foi ensinado por Dōgen. Grande mestre Zen que trouxe a tradição Zen da China para o Japão, e fundou a tradição e a escola da qual eu faço parte, a Sōtō-shū.

Me permitam repetir os argumentos e ensinamentos da “mente de principiante”. A mente de principiante é assim chamada, porque ela lembra a atitude de muitas pessoas que vem ao Zen pela primeira vez. Nem todas as pessoas que vem ao Zen vem com a mente de principiante, mas muitas vem. E essa mente é uma mente aberta, como um papel em branco. A pessoa não conhece ainda o Zen, nunca viu nada. Embora todos nós tenhamos expectativas em relação à prática, a mente de principiante possui uma capacidade de absorver a prática de uma maneira muito pura, muito aberta, sem desconfiança, sem intelectualidades exageradas. Sem medo de ser convencido a algo fanático ou perigoso. A prudência é necessária, e o próprio Buddha ensinou a necessidade de investigação e estabelecimento da prática quando nós percebemos que ela realmente é boa, é saudável, para nós mesmos e para as pessoas em torno de nós. Mas a mente de principiante é a mente necessária para que o ensinamento e a experiência de auto-observação do Zen aconteça. É uma mente que não tem resistência. Uma coisa é você ter bom senso e prudência, outra coisa é você resistir a cada passo.

A mente de principiante é considerada parte da experiência Zen seja você um iniciante, seja você um mestre. Ela se contrapõe à atitude arrogante, à atitude intelectualista, à atitude fanática. A mente de principiante representa uma mente que flui, e ao fluir, a atitude aberta, esse papel em branco, pode haver nele escritos, aprendizagem e sabedorias.

A prática zazen é uma prática de auto-observação. Não é uma prática que vai acontecer da noite para o dia. Eu disse ontem em Niterói que o Genshō Sensei ensina que o Zen é enganadoramente simples. Muitas pessoas imaginam que ficar parado em silêncio, virado para a parede, é algo passivo em que não se aprende qualquer coisa. Esse é um engano do Zen, apesar dele parecer na sua simplicidade algo banal, superficial. O silêncio que nós praticamos aqui será banal e superficial se nossa mente assim o for. Como eu sempre procuro ensinar, todos nós viemos para cá, com personalidades, com atitudes. O grande desafio é, se cada um de vocês vai conseguir compreender que a profundidade do zazen depende profundamente de seu interesse. De seu interesse pessoal em realmente se auto-observar. Realmente se investigar.

Nós vivemos em uma sociedade extremamente exterior, em que tudo tem que vir de fora. E nós temos que nos esforçar muito pouco para obter alguma coisa. E mesmo quando nós nos esforçamos, a coisa que nós obtemos, a percepção da nossa mente é que essa coisa veio de fora para nós. O ensino de Buddha, o ensino do Zen, é de que as grandes realizações surgem dentro. As grandes descobertas, as grandes sabedorias, a mais profunda aprendizagem, ela surge dentro. Nada do que eu diga, nada do que o Buddha ensinou, nada do que em qualquer livro esteja escrito, vai transformar a sua vida por você. Vai dar a você sabedoria. Pode dar conhecimento. Conhecimento não é sabedoria.

Nada que vem de fora oferece esclarecimento, oferece à vocês a oportunidade de se tornarem seres humanos melhores. Essa ideia de que a autoajuda é de fato uma ajuda que vem de um livro, um livro de autoajuda, é uma das ideias mais bobas que eu já vi. Ela é falsa, ela pressupõe que se você comprar um livro de autoajuda, o livro de autoajuda vai te ajudar que você se ajude. O ensino de Buddha não é autoajuda, porque de fato, embora possa parecer diferente, vocês não precisam de ajuda. Vocês precisam acordar. Acordar para as suas próprias realidades.

Como se diz na tradição, todos nós temos o potencial de nos tornarmos Buddha. Todos nós. Esse potencial já existe, cabe a nós compreender que a compreensão e a sabedoria na vida depende de uma revolução interna. Depende da coragem que vocês tem em realmente confrontar quem vocês são. Descobrir e aceitar honestamente os aspectos que vocês tem, que são saudáveis, e os aspectos que não são saudáveis, e transformar os aspectos não saudáveis para que eles possam ser curados. O Buddha ensinou que todos nós sofremos uma endemia mental. Nós estamos mergulhados em um vício. Somos todos viciados. Nós somos viciados em nós mesmos. Isso é chamado egoísmo.

[CONTINUA]


Palestra proferida por Kōmyō Sensei no Daissen Rio de Janeiro em 1º de abril de 2023.