[CONTINUAÇÃO]
O conceito das relações de antagonismo vem como um conceito de unificação inseparável dos dualismos, tais como: fonte original e afluente, claridade e escuridão, dependência mútua e independência — como estudamos na aula anterior.
Nesse conceito, sujeito e objeto se unificam. Todos os objetos, seres ou coisas do mundo exterior são percebidos e processados; ou seja, a realidade externa é apreendida por nós. Certamente, todos os seres e coisas coexistem juntamente com a verdade universal — assim como uma caixa e sua tampa se encaixam precisamente. Havendo fenômenos, eles ajustam-se à essência original.
O que nós chamamos, aqui, de fenômenos?
Todas as coisas — absolutamente todas as coisas do mundo relativo — são fenômenos. Eles estão ajustados completamente à essência original. É por isso esse verso de que se encaixam como uma caixa e sua tampa: a verdade universal (ou, de outra maneira, verdade única, essência original, vazio ou absoluto).
Esses conceitos são frequentemente intercambiáveis; não se usa apenas um único termo porque, se usássemos um único conceito, cairíamos na armadilha de personificar o absoluto como uma entidade — como um “algo”. E esse “algo” seria mais um fenômeno, não é assim? Todos os fenômenos são esse “algo”. O vazio é todas as coisas, nenhuma em separado. Não é uma coisa ou algo isolado. Por isso trocamos nomes o tempo todo, como se estivéssemos falando sobre qualidades, em vez de adotar um único nome. Porque então correríamos o risco de personalizar esse nome, chamá-lo com o nome de um deus, por exemplo, e entraríamos de novo numa grande confusão.
A imagem das duas flechas que se chocam remete a um livro antigo de um filósofo taoísta chinês. Conta-se que dois arqueiros famosos se enfrentam com destreza magistral e lançam simultaneamente suas flechas no ar, uma contra a outra; as flechas chocam-se e caem precisamente no meio do percurso.
Os dois arqueiros, ilesos, mutuamente e descontraidamente, apreciam suas façanhas — assim como na tradição em que pais e filhos harmoniosamente estreitam e unificam seus laços. Na relação entre pais e filhos, por mais que haja contradições e rebeldia, no final das contas, quando os egocentrismos são dissolvidos e transcendidos, sobra a gratidão e o amor filial.
Essa destreza extraordinária — essa coincidência das duas flechas que se encontram no ar — é uma analogia para a relação perfeita do mundo absoluto com o mundo relativo. Falamos na aula anterior de muitos pares, como claridade e escuridão, luz e sombra; as contraposições dos dois lados harmonizam-se e fazem com que as coisas existam. Por exemplo: dizemos que a luz e a claridade se contrapõem à escuridão, mas, na realidade, a escuridão só existe pela ausência de luz, e a luz só ilumina porque há escuridão. Se colocássemos luz num lugar já extraordinariamente iluminado, nem a perceberíamos — é como acender uma vela num quarto iluminado pelo sol; parece que a vela não está gerando luz. Para vermos a luz da vela, é necessária a escuridão.
Assim, uma e outra coexistem e existem em dependência mútua. O absoluto e o relativo são uma só coisa, mas também devemos compreendê-los como dois aspectos diferenciados. Onde há seres e coisas, certamente há essência absoluta; ambos são como caixa e tampa que se unificam em um só elemento. Quando estamos aqui, isso quer dizer que a natureza búdica também está aqui. Sendo parte do mundo fenomenal, somos expressão da natureza de Buddha.
Lembrem da famosa história do mestre que respondeu erroneamente à pergunta “um cachorro tem natureza búdica?” — e respondeu que não. Ao dizer isso, caiu num mundo de ignorância durante muito tempo. Porque, na verdade, todas as coisas têm natureza búdica: no sentido de que, dado o tempo suficiente, todas as pessoas e todos os seres, um dia, serão buddhas. À medida que ocorrem transformações, uma transformação possível é a própria iluminação.
Perguntaríamos, então: por que praticamos? Por que queremos escapar mais depressa do sofrimento, da ignorância, das coisas que nos deixam perdidos? Por isso praticamos o Dharma; por isso estudamos o Dharma; por isso ouvimos palestras; por isso sentamos em zazen.
Mas, a longo prazo, é garantido: todos seremos buddhas. As piores pessoas do mundo, um dia, serão buddhas; porque, dado o tempo suficiente, todos os eventos possíveis também sucederão. Portanto, todos nós somos expressões da natureza de Buddha. Sendo parte do mundo fenomenal, somos possibilidades em ação. Portanto, eu, como fenômeno, não sou apenas eu.
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Palestra proferida por Genshō Sensei em teishō na Daissen Virtual no dia 21 de setembro de 2024.