Sandōkai: Quarta Estrofe - Parte 1

Sandōkai: Quarta Estrofe - Parte 1

O Dharma, incomparavelmente profundo, e de uma sutileza infinita, é raramente encontrado, mesmo em milhões e milhões de ciclos universais. Possamos nós agora, ouvi-lo, aprendê-lo, guardá-lo. Ouçamos cuidadosamente as palavras do Tathāgata.

Nós vamos continuar hoje com a quarta estrofe do Sandōkai, o poema de Sekitō Kisen, recitado um dia sim, um dia não, nas cerimônias da manhã, em todos os monastérios Sōtō-zen. A quarta estrofe fala que os quatro elementos da natureza, por si só e em harmonia, retornam à vacuidade. Assim como uma criança perdida encontra o sossego ao retornar ao colo de sua mãe.

“O fogo é quente e o vento caracteriza-se pelo movimento. A água é úmida e a terra é sólida e dura. Os olhos veem as coisas e as cores, os ouvidos ouvem os sons, o nariz percebe os odores e a língua os sabores.

Ademais, a atividade de cada um dos diferentes fenômenos ocorrentes, de acordo com a ação da raiz, a essência, as folhas, fenômenos, proliferam-se livremente. A essência original pura e cada fenômeno discriminativo, ambos retornam à verdade do vazio. Na essência original não há distinção dualista.

Esses dez versos tratam especialmente do aspecto da independência dos fenômenos. Os quatro primeiros foram sobre os elementos.

Naquela época, acreditava-se que os elementos que constituíam a natureza eram quatro. Água, ar, terra e fogo. Evidentemente, isso não é mais do que o fato de que havia ignorância a respeito da constituição das coisas.

Na verdade, nós só compreendemos os elementos constituintes da natureza no século XIX, ou seja, fazem pouco mais de 100 anos do estabelecimento da tabela periódica dos elementos. Essa crença em quatro elementos é partilhada pela filosofia grega, pela filosofia indiana, pela filosofia chinesa antiga da qual o Japão herdou. O que interessa para nós aqui é a ideia da independência dos elementos da natureza por si só, que em harmonia retornam à vacuidade.

Assim como uma criança perdida encontra o sossego ao retornar ao colo de sua mãe. Isso refere-se a ensinamentos que mostram que todos os seres presentes na natureza, os seres vivos e coisas materiais, nada mais são do que uma mistura dos elementos. A ideia em si não está errada.

Todas as coisas da natureza, e mesmo nós, somos constituídos de um grupo limitado de elementos em quase infinitas formas de combinação. A ideia é de que os quatro elementos naturalmente retornam à natureza original. Ou seja, os elementos em si, e vamos ler assim, retornam à natureza original.

O que é a natureza original? Aquele substrato do qual nós falamos e que é tão bem expresso no Sutra do Coração como o vazio da forma e a forma o vazio. Ou seja, aquilo que nós chamamos vacuidade absoluta. Então eles retornam, metaforicamente falando, à quietude da verdade universal original. Ou grande vacuidade universal.

Essa múltipla maneira de nos referirmos ao fato de que todas as coisas juntas relativas formam, na verdade, o absoluto. O absoluto não é mais do que a soma dos relativos e os relativos em si são a própria vacuidade absoluta.

O importante para nós, em termos budistas, é compreender quanto isso se distancia da ideia de um criador. A ideia de um criador está cheia da noção de que existe um plano ou alguém, uma vontade, uma inteligência que define e monta as coisas do universo de uma determinada maneira. A ideia budista não é esta.

A ideia budista é simplesmente. Isto é porque aquilo é. As coisas dependem umas das outras na sua existência. E todas elas pertencem a uma enorme vacuidade, um vazio universal, original, que significa vazio de uma personalidade própria, de uma autonomia, de um eu.

A noção de vazio de um “eu” é talvez a mais difícil do conceito budista, mas ela é essencial. Se nós não compreendermos o vazio de um eu em todas as coisas, inclusive em nós mesmos, não compreendemos o Budismo. Temos que compreender que aquilo que nós tomamos como um eu não é mais do que uma construção mental.

A ideia, talvez a analogia melhor para isto, é de um filme. Nós tomamos consciência, percebemos com o nosso corpo, os nossos sentidos, o que já vimos em outros versos do poema original. Não vamos esquecer que o poema tem mais de mil anos de idade.

Nós tomamos consciência das coisas como um fotograma em um filme. Nós temos uma foto de um determinado momento. Isso não nos conta nenhuma história, nem nada.

[CONTINUA]


Palestra proferida por Genshō Sensei em teishō na Daissen Virtual no dia 31 de agosto de 2024.