Sandōkai: Quarta Estrofe - Parte Final

Sandōkai: Quarta Estrofe - Parte Final

[CONTINUAÇÃO]

Então a compreensão é realizada sobre dois aspectos. No primeiro, eu, sujeito, vejo algo, o objeto. No segundo, não há ninguém vendo, nem há nada para ser visto.

Podemos chamar o primeiro aspecto de relativo e dualista e o segundo de absoluto. E ambos, como maneira de ver, são verdadeiros. Por isso, podemos dizer que existe uma identidade entre relativo e absoluto.

Então, quando vemos algo, nossos olhos e as formas vistas, bem como sujeito e objeto, formam uma só unidade. Portanto, no mundo absoluto, sujeito e objeto são um, mas também são dois, no mundo relativo. Quando não há interpretação da mente pensante, tudo é vazio e não existem sujeito nem objeto atuantes.

O ensinamento é que somos nós, através da nossa interpretação da mente pensante, que criamos, de certa maneira, o mundo objetivo. Esse mundo relativo é criado dentro da nossa mente. No mundo absoluto, essas coisas não existem.

Por isso, no mundo absoluto, não se pode dizer que há bem e mal, certo e errado, em cima e embaixo. Essas são ações da mente discriminativa, do mundo relativo, que, desta forma, criam o mundo que nós vemos. Não devemos viver apenas no mundo da dualidade.

Devemos observar o mundo do ponto de vista dualístico e também do ponto de vista do absoluto. Podemos sentir a unicidade dos mundos, objetivo e subjetivo, a unicidade dos olhos com as formas, a unicidade da língua com o paladar, etc. Cada dharma está enraizado no absoluto Dharma como ele é, que é a natureza de Buddha.

E, de uma forma interessante, tornou-se padrão no Budismo escrever dharma com letra minúscula para nos referirmos a todos os fenômenos, a todas as coisas. E Dharma com letra maiúscula para falar do conhecimento, da sabedoria, da natureza de Buddha. Uma imagem que talvez possa nos fazer entender melhor do que estamos falando é que as folhas das árvores são alimentadas pela raiz.

Mas a raiz da árvore está enraizada em tudo aquilo que já feneceu, em tudo o que já morreu. É tudo o que já morreu que alimenta a raiz da árvore. E a árvore produz frutos, não? Ela cresce, é linda, mas ela está com as suas raízes em tudo o que já é morto, em todo o húmus, em todas as coisas que já apodreceram, no adubo dos excrementos, em tudo isso.

Tudo isso junto produz frutos deliciosos. Se olhamos as coisas desta maneira, podemos ver que a morte e a vida são uma única coisa e que a vida vive da morte. Inclusive nós todos que estamos aqui agora vivemos da morte.

Nos sentamos depois para comer e comemos frutos, grãos, que são vida. É quando eu tomo de um grão de arroz e como, esse grão de arroz não vai produzir mais uma planta. Eu matei a sua possibilidade de vida e ele se transforma em mim, na minha vida.

É assim que nós vivemos na vida, mas a vida em si vive toda da morte. Se nós compreendermos esse tipo de unicidade entre dualismo e absoluto, estaremos compreendendo melhor do que se está falando. É uma compreensão mais profunda do que é a compreensão superficial de todas as coisas.

Na essência original, não há distinção dualista quando se usam palavras como superior e inferior, diz o poema. A essência original, que é livre de distinções duais, como também os fenômenos que estão sujeitos aos dualismos, ambos retornam ao grande vazio universal. Eu fiz a analogia da árvore e das suas raízes e do que ela vive e o que ela produz.

E assim também é conosco. Mas, nessa analogia, nós podemos compreender que existe um grande vazio de identidades e todas as coisas estão misturadas. E apenas há manifestações temporais, do tipo apodrecimento do húmus, fertilização das raízes, novas, brilhantes folhas, e frutos coloridos que a árvore produz.

Todos eles fazem parte de uma enorme mutação contínua, num fluxo contínuo, que é o grande vazio universal de identidades separadas, em que tudo está misturado e apenas reverbera sobre forma de manifestações. Conceitos dualistas, tais como raiz e folhas, principal e secundário, absoluto e relativo, são inseparáveis. Em última instância, formam uma só unidade.

Mas também os dualismos expressam individualidade, singularidade, independência de todos os seres e coisas. Olhamos para a árvore. Existem folhas, existem raízes, existem frutos, existimos nós.

Existe a nossa alimentação, existe a nossa vida, existe o que produzimos, existe o que deixamos. Isso existe. Então as coisas são independentes.

Durante uma fração no tempo, um período no tempo, elas se manifestam independentemente. Mas, na realidade, no fundo, todas elas pertencem a um grande absoluto. E as manifestações são o mundo relativo.

E o mundo relativo e o mundo absoluto são uma só coisa. O mundo relativo é a manifestação do mundo absoluto. Enfim, pela própria natureza da última realidade, absolutamente nada pode escapar do regresso à grande vacuidade.

Então, quando você é completamente independente, como é aqui e agora, como um aluno da Daissen aqui ouvindo uma palestra, expressando sua natureza própria, sem dúvida, você é uma manifestação do absoluto em uma condição relativa.

Espero que todos estejam aproveitando alguma coisa com essa palestra. Eu sei que é um pouco complexo, mas é o tipo de entendimento que nós precisamos ter como budistas, que nos afastamos de crenças mágicas e de ideias sobrenaturais para optar por um conhecimento profundo da realidade, e aqui no caso da conexão entre o absoluto e o relativo da sua identidade e existência simultâneas.


Palestra proferida por Genshō Sensei em teishō na Daissen Virtual no dia 31 de agosto de 2024.