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Mas a sucessão de fotogramas de um filme, passando a 24 quadros por segundo, nos faz perceber uma história, nós identificamos um personagem, identificamos a maneira como ele age, somos tomados por sentimentos. Há toda uma história contida no filme, desde que haja uma sucessão de fotogramas um depois do outro. Mas se a cada fotograma esquecemos o fotograma anterior, não existe história, nem filme, nem personagens, não existe nada.
Existe só uma percepção de sombras e cores em um momento. Então, o que liga, o que faz com que nós tenhamos essa noção no filme? A nossa memória do fotograma anterior. A sucessão de fotogramas unidos pela memória nos dá a sensação da existência.
Da existência de personalidades, de história, de todas as coisas contidas no filme. Então, é a memória, o liame, a memória no tempo, o liame que faz com que os momentos de consciência se tornem a consciência, aquilo que nós chamamos de “a consciência”. E aquela noção que nós temos de um “eu” é proporcionada pela sucessão dos momentos de consciência que nós vivemos.
É isso que faz, por exemplo, essa palestra. Se nós tomarmos um instante da palestra em que eu estou dizendo a letra A, nós não teremos mais nada do que isso. Só A e pronto, acabou.
Só aquele momento. Não existe a palestra. Não existe professor. Não existem alunos. Só existe um quadro, um momento.
Essa é a noção mais difícil de ser compreendida no budismo, porque somos iludidos constantemente pela nossa noção de que somos um “eu”, que somos uma identidade.
O mestre Shunryū Suzuki comenta que, de maneira similar, o ser humano, por meio do seu eu superior, espontaneamente retorna à fonte original do vazio. Justamente porque, primordialmente, ele é dotado dessa natureza original. O comentário de Shunryū Suzuki a esse respeito é como se dissesse, eu participo desse eu original, desse vazio.
Se eu paro com as minhas ilusões, eu retorno à fonte original. E se eu perceber a fonte original, então eu vi minha verdadeira natureza. Minha verdadeira natureza é aquela, não a ilusão dos meus momentos de consciência que podem ser proporcionados pelas percepções do meu corpo, dos meus sentidos.
Não é isto. Na verdade, a minha verdadeira natureza é algo muito mais profundo. E isso que eu estou vivenciando aqui, agora, tem a consistência de um sonho, de uma sucessão de momentos de consciência proporcionados por um corpo com sentidos.
Então a verdade original, a natureza original, a vacuidade absoluta é a verdadeira verdade. E o que nós estamos vivendo agora, neste momento, é a nossa ilusão que tem a consistência de um sonho. Por isso, aquela história da morte de Jōshū, aquele grande mestre que morreu com 116 anos de idade.
Jōshū é perguntado por um discípulo, no momento de sua morte, nos diga alguma coisa. E ele disse, mas eu já disse tudo. E o discípulo insiste e Jōshū responde, a vida é um sonho e morre.
Essa última frase de Jōshū é uma frase de uma mente iluminada. Ele sabe, é um sonho. A seguir, o terceiro e o quarto versos falam sobre a face original, a independência de todos os seres, que não é algo de natureza adquirida nem artificial, mas um dote original naturalmente recebido da grande natureza.
Como seres humanos, somos constantemente ensinados e guiados pela ação da nossa essência original, como também pelos princípios fundamentais da vida. Parece que mestre Sekitō Kisen de forma dual e relativa, fala sobre a dependência dos olhos, dos seus objetos ou dos sentidos em relação a todas as coisas que percebe. Mas em seu sentido verdadeiro, quando você vê algo, não há nada para ser visto, nem ninguém para ver.
Apenas quando você analisa, é que há alguém vendo e algo que é visto. Essa observação toca na ideia de coemergência. As coisas surgem à medida que são vistas e são interpretadas pela nossa própria mente.
Originalmente, não há nada, tudo está contido em uma única grande existência que flutua em todo o universo de uma forma ou de outra. Então, quando você vê algo, não há nada para ser visto, nem ninguém para ver. Mas quando você interpreta com sua mente, então há alguém vendo e há algo para ser visto.
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Palestra proferida por Genshō Sensei em teishō na Daissen Virtual no dia 31 de agosto de 2024.